segunda-feira, 16 de junho de 2008

A cultura como realidade

Meus caros, essa é uma discussão crucial para o debate do tema " cultura"


Tem muita gente que não ´acredita´ em cultura. Para quem pensa assim, há povos sem cultura, como haveria pessoas ´sem personalidade´. Um psicólogo diria que ser triste ou apagado não seria sinal de ausência, mas de presença e um certo tipo de personalidade. O mesmo ocorre com o conceito de cultura.

Todas as sociedades têm cultura, mas nem todas têm as mesmas artes e, sobretudo, a tecnologia capaz de destruir o ambiente, as outras sociedades ou o planeta.Por isso, poucas tomam seus hábitos de vida como o supra-sumo do refinamento e da ´civilização´. No Brasil, confundimos ´cultura´ com ´civilização´ e ambas com refinamento, de modo que deixamos de problematizar certos costumes locais como o nepotismo, o poder como segredo, a condescendência, situando-os como costumes a serem automaticamente erradicados pelo advento civilizatório.

Não há dúvida de que boas instituições e leis engendram boas condutas, mas como estamos fartos de saber, nem sempre o governo esperado, o partido político que traria a utopia, o regime mais ´civilizado´ se vê livre dos velhos costumes que insistentemente retornam.Não se deve inventar a roda, mas os processos de mudança efetivos só ocorrem quando algo de dentro se combina com alguma coisa de fora. Por exemplo: uma economia globalizada, dinamizada por técnicas que demandam transparência, pressiona hábitos sociais implícitos - por exemplo, o nepotismo, a condescendência e o segredo como apanágio do poder, tornando-os discutíveis e promovendo sua transformação.

Como é possível saber instantaneamente todos os meus telefonemas e não saber quanto o prefeito da minha cidade gasta com seus assessores?Se adotamos a racionalidade como centro do gerenciamento público, como calar diante de um governador que leva a sogra numa viajem para o exterior num avião fretado, a pedido de sua jovem esposa? Seria o retorno um sintoma de imutabilidade? Penso que não. Mas isso não significa que é fácil substituir hábitos tidos como naturais por outros, vistos como mais práticos ou racionais.Um caso de desentendimento cultural exemplar foi o da Fordlândia.

Vale relembrá-lo neste momento em que a agressão à floresta amazônica e aos seus habitantes tradicionais fazem a mídia. Ademais, ele é instrutivo, porque ocorreu num contexto geral de promoção do progresso econômico, dentro de uma motivação industrial e não política ou ideológica.No fim da década de 1920, o magnata Henry Ford, decidiu ser auto-suficiente em matéria de borracha. Implantou, na região do Rio Tapajós, em plena Amazônia, numa área de 10 mil quilômetros quadrados, a Fordlândia. Ali, a floresta amazônica e seus habitantes foram submetidos aos meios de produção cultural de Detroit. Em plena mata, surgiu uma comunidade na qual os prédios principais eram a biblioteca, o hospital e um campo de golfe, não a igreja ou o palácio do governo. Tal como na Ford, todos foram obrigados a usar um distintivo de identidade.

A jornada de trabalho, que era marcada pela coleta do látex e não por hora, passou a ser de como a da fábrica: de 9 às 5. Se os automóveis Ford saíam de esteiras, as seringueiras que produziriam a borracha seriam plantadas em linhas, não em blocos, como seria desejável. A invenção de um espaço ideal - estilo Brasília, cidade para uma sociedade sem classes - levou a imaginar uma comunidade do meio-oeste americano: monogâmica, sem álcool ou fumo (estávamos em plena lei seca americana que durou de 1920 a 1933), mas com clubes de leitura de poesia e de canto que substituíam as festas locais.O extremo, porém, ocorreu na comida. Banida a comida amazônica - peixes, pirões e caldos -, comia-se não em pratos, mas em bandejões que individualizam o alimento, alface, tomate, batatas, ervilhas e, principalmente, espinafre.

Servida sem sal ou ´tempero´; sem a vestimenta de ´pratos´ e comensalidade, a comida foi o ponto de partida para uma violenta revolta dos operários. Rebelião pelo gosto e pelos costumes, não pelo horário de trabalho ou salário.A revelar que a ´cultura´, quando mexida de fora para dentro em pontos sensíveis (mas insuspeitos), adquire realidade e poder. Aquilo que para os engenheiros da Ford era um exemplo de refinamento e racionalidade, tornou-se para os trabalhadores locais um explosivo traço de intolerável humilhação. Afinal, como diz o velho ditado, nem só de economia, digo, de pão vive o homem.

Texto publicado no jornal Diário do Nordeste - 14/05/2008
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=537297

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